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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Pressionada pelo Vaticano, justiça brasileira concede liminar para manter a missa na TV Brasil


A Folha Online noticiou que a Justiça Federal do Distrito Federal concedeu no dia 20/9 uma decisão liminar que mantém a exibição do programa "Santa Missa" na TV Brasil.

No dia 22 de março, o Conselho Curador da EBC (Empresa Brasil de Comunicação) suspendeu a transmissão da missa católica da sua grade. A ideia do conselho é de respeitar a laicidade do Estado brasileiro e evitar a ditadura de algumas religiões sobre outras.
A missa é exibida pela TVE desde 1989. Com a criação da EBC, passou para a TV Brasil. No último domingo haveria a sua última exibição.
A advogada Claudine Milione Dutra, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, disse ao repórter Daniel Roncaglia, da Folha, que houve várias tentativas "para que o conselho mudasse a decisão". (Em bom português, quer dizer que houve tremendas pressões). "Agora, os programas vão continuar no ar até o julgamento de mérito", disse Dutra. O diretor do programa, padre Dionel Amaral, comemorou a decisão da Justiça: "foi uma vitória de Deus".
Quando foi anunciado o fim do programa, membros da Igreja Católica incentivaram os fiéis a enviar emails e cartas à presidente Dilma Rousseff. A Igreja argumenta que a transmissão é baseada no decreto 7.117/2010, que ratifica acordo entre o Vaticano e o Brasil.
Esse acordo é conhecido como "Concordata", e encontra-se em tramitação no Congresso Nacional. Foi assinado em 13 de novembro de 2008 pelo presidente Lula e o papa Bento XVI. Mas, para que entre em vigor, tem de ser aprovado pelo Poder Legislativo. No último dia 30 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para a matéria.
Segundo a Folha, a decisão liminar mantém também a transmissão do programa "Reencontro", da Igreja Batista, exibido desde 1972.
O diretor jurídico da EBC, Marco Antônio Fioravante, informou que depois de receber a notificação judicial nesta quinta-feira, a encaminhou para o Conselho Curador da EBC.
É lamentável que confissões religiosas continuem atropelando os princípios do Estado laico brasileiro. Uma coisa é garantir a liberdade de consciência e de crença e o livre exercício dos cultos religiosos (que, aliás, inclui o direito dos ateus, materialistas e agnósticos de não professar nenhuma fé). Outra bem diferente é o Estado brasileiro aceitar imposições do Vaticano e de outras organizações religiosas, que, a propósito, reprimem as expressões religiosas de raízes afro-brasileiras.
Transcrevemos abaixo um artigo da Ação Educativa (http://www.acaoeducativa.org.br) sobre as ameaças embutidas no acordo firmado entre o Brasil e o Vaticano.

Acordo entre Brasil e Vaticano ameaça o Estado laico e as liberdades fundamentais

Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional a proposta de ratificação de uma Concordata (Acordo) entre o Brasil e a Santa Sé (Mensagem n° 134/2009), que, sob o argumento de regulamentar “o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”, na verdade dispõe sobre uma série de direitos fundamentais associados à liberdade de crença e culto, ferindo o princípio da laicidade estatal. Uma das principais vertentes da Concordata é justamente a previsão de ensino confessional nas escolas públicas, “católico e de outras confissões”.

A Concordata foi assinada em 13 de novembro de 2008, em audiência entre o Presidente Lula e o Papa Bento XVI. No entanto, para que passe a valer juridicamente em âmbito interno e internacional, precisa ser aprovado pelo Poder Legislativo. No último dia 30 de junho, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência para a matéria, o que coloca em risco o debate democrático e esclarecido sobre seu conteúdo e implicações.

Um acordo inconstitucional precisa (no mínimo) ser debatido

“Concordata é o nome que se dá aos acordos assinados pela Santa Sé, órgão máximo da Igreja Católica Apostólica Romana, com o governo de qualquer país. Devido ao caráter jurídico peculiar da Santa Sé, esses acordos têm status de tratado internacional do tipo acordo bilateral. No Brasil, acordos internacionais são assinados pelo Presidente da República e dependem de posterior aprovação do Congresso Nacional (Constituição, art.84, VIII). Uma vez aprovados, esses acordos têm força de lei e são incorporados à vida nacional. E, o que é especialmente importante, pelas normas internacionais, não podem ser desfeitos nem alterados por apenas um dos lados.” (Fonte: http://acordovaticano.blogspot.com).

A assinatura da Concordata, que trata eminentemente de assuntos religiosos de interesse da Santa Sé, significa, a princípio, o tratamento estatal diferenciado de uma crença religiosa em detrimento das demais, as quais, por questões que dizem respeito unicamente às próprias confissões, não dispõem de organismos internacionais com personalidade jurídica nos moldes da Igreja Católica. Também significa o tratamento diferenciado em relação aos cidadãos ateus e agnósticos. Por tais razões, é flagrante a inconstitucionalidade da medida, por violar ao menos dois princípios basilares do direito brasileiro: a laicidade estatal (Constituição, art.19, I) e a igualdade material, em sua vertente de proibição de tratamento diferenciado entre cidadãos por razões de ideologia, crença ou culto (art.5°, caput, e art.19, III).

Esta inconstitucionalidade exigirá por parte do Congresso Nacional e, eventualmente, do Sistema de Justiça, um posicionamento decisivo em defesa dos princípios constitucionais pétreos (imodificáveis) e das liberdades fundamentais de crença e culto, que devem ser exercidas sem qualquer intromissão estatal.

A despeito de seu objeto declarado ser o “Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil” e de seus defensores propagarem que o documento apenas sistematizaria aspectos já contemplados no direito nacional, a Concordata, na verdade, trata de uma série de direitos fundamentais da população brasileira, retirando-lhe a prerrogativa de autodeterminação, através de seus representantes e dos instrumentos de democracia direta, em temas fundamentais como: a proteção ao patrimônio cultural (art.6°), a forma de oferta do ensino religioso (art.11), o estatuto do casamento (art.13) e a extensão dos direitos trabalhistas (art.16).

Por tais razões, merece censura por parte da sociedade brasileira a forma pouco democrática como um tema de tão importante relevância e de tamanha repercussão na vida social foi tratado, até então, pelo governo nacional, sendo que o conteúdo do texto somente veio a público após sua assinatura em 13 de novembro de 2008, na Cidade do Vaticano, por ocasião da visita do Presidente Lula. Frente a este precedente, esperamos que o Congresso Nacional oportunize o debate necessário em suas Comissões Temáticas e na Comissão de Constituição e Justiça, ouvindo todos os setores interessados, analisando a fundo a constitucionalidade do texto e rejeitando as tentativas de aprovação sumária já postas em curso.

Um dos temas centrais da Concordata, com grande potencial de intervenção na realidade e nos debates internos, é justamente o ensino religioso, como está demonstrado adiante.

O ensino religioso confessional “católico e de outras confissões religiosas”

Além desses aspectos gerais e apesar da Mensagem Presidencial insistir na idéia de que o acordo respeita a Constituição brasileira, alguns pontos são flagrantemente inconstitucionais e precisam ser rejeitados pelo Congresso. Nesse sentido, um dos principais pontos de preocupação é a possibilidade de retrocesso em relação ao ensino religioso, pois o acordo retoma uma concepção incompatível com o atual ordenamento jurídico, prevendo um modelo puramente confessional de ensino, dividido entre o “católico e de outras confissões religiosas”.

A educação é direito de todos e dever do Estado, da família e da sociedade, sendo a garantia de ensino universal e gratuito atribuição específica dos poderes públicos, respeitado o princípio da gestão democrática. A escola pública, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade é, nesse sentido, um espaço primordial de promoção da igualdade e do respeito à diversidade, bases para o exercício da cidadania e o desenvolvimento sustentável. O Estado laico, por outro lado, enquanto conquista indelével da cidadania, é aquele que respeitosamente não interfere nos assuntos religiosos e não estabelece relações de dependência ou aliança com cultos religiosos, igrejas ou seus representantes; consequentemente, é aquele que não cria distinções entre brasileiros ou preferências entre si (Constituição, art.19, incisos I e III). Sob tais fundamentos, Estado laico e escola pública universal, inclusiva e democrática são, historicamente, conquistas associadas e interdependentes.

Nesse sentido, carece de revisão por parte da sociedade brasileira e de seus representantes no Congresso Nacional o dispositivo do art.210, §1°, da Constituição (previsão de oferta obrigatória de ensino religioso, com matrícula facultativa), bem como sua regulamentação. Tal dispositivo é um corpo estranho no ordenamento constitucional de nosso Estado laico, com conseqüências negativas para o ensino e a cidadania. A realidade tem demonstrado que a previsão de “ensino religioso” se materializa nos sistemas estaduais e municipais de ensino como verdadeiro campo de disputas religiosas, absolutamente deletérias aos interesses do Estado, da sociedade e, destaque-se, das próprias crenças e confissões, veja-se nesse sentido a posição histórica de muitas delas a favor da laicidade estatal e, mais recentemente, contra a aprovação do Acordo com a Santa Sé, no que se alinham inclusive setores católicos. Nesse sentido, a formação religiosa é parte constituinte do direito à liberdade de crença e culto, devendo ser respeitada e protegida pelo Estado contra a interferência de terceiros, sendo exercida na esfera privada da família, da comunidade e de suas escolas e instituições confessionais.

Essa questão tem sido objeto de amplas discussões ao longo da história da educação brasileira, sendo certo que ainda não alcançamos o melhor modelo de definição, que estaria baseado no tripé: escola pública laica, liberdade para a abertura de escolas confessionais (sem financiamento público e respeitadas as normas estatais) e proteção à liberdade de crença e culto. No entanto, caso aprovada, a Concordata agravará profundamente as disputas religiosas na escola pública, e, com isso, difundirá em todo o território nacional as lutas por hegemonia já manifestas em algumas redes de ensino. No que seria um verdadeiro retrocesso até mesmo em relação à LDB, norma que atualmente delega aos sistemas de ensino a eleição dos conteúdos do ensino religioso e aponta para um modelo interconfessional (LDB, art.33), o Acordo retoma e praticamente consolida um modelo puramente confessional de ensino religioso, a ser loteado entre “católico e de outras confissões religiosas” (Mensagem n° 134/09, art.11, §1°).

Por tais razões, cabe às organizações, redes e movimentos (religiosos ou não), e principalmente aos educadores de todos os níveis, aos trabalhadores da educação, aos estudantes, às comunidades escolares e aos demais agrupamentos do campo educacional que historicamente tem lutado pelo escola pública laica enquanto elemento de qualidade reforçar as iniciativas críticas da sociedade brasileira à aprovação desta Concordata, quanto mais pela forma antidemocrática como esta vem se dando. Cabe a todos o chamado para que manifestem sua posição crítica ao Congresso e aos meios de comunicação, bem como a promoção do debate público, em respeito à efetiva liberdade de crença.

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